Londres, diário negro
Londres, Capital Olímpica do Tiro ao Alvo. São 8.29 da manhã, e José Casimiro Matias, um luso-serralheiro desce apressadamente as escadas da estação de Convent Garden. Como sempre, leva consigo a sua mochila com todas as ferramentas e com o farnel, que a mulher carinhosamente preparou nessa mesma manhã.
John Moore ("Babyface", como lhe chamavam os amigos do bairro mineiro WestBromwhich, de Liverpool), 27 anos, polícia recém-formado pela Real Academia de Polícia de Londres. A sua primeira semana de trabalho está prestes a terminar, e ainda não precisou de premir o gatilho. Hoje em dia, as ordens superiores são muito claras: "Disparar em caso de dúvida". Ainda ontem o podia ter feito, quando duvidou que 3 reformadas britânicas tivessem em dia o seu cartão de aposentadas para os transportes públicos. Decidiu não disparar, pois na hora H foi inundado por um acesso de caridade que ainda hoje não pode explicar. Passou toda a noite às claras, questionando o seu profissionalismo.
José Casimiro (LaCasitos, como lhe chamavam os amigos dos campos de morango da Andaluzia, onde tinha estado 3 anos antes) acaba de recolher o bilhete da máquina de validação de entrada, entrando no extenso corredor que dá acesso à linha verde. Precisa de continuar a correr já que não pode perder o metro das 8.32. Já sabe que o seu patrão não tolera atrasos, ainda menos por parte dos estrangeiros.
John olha o seu relógio de quartzo Made in Taiwan, que está invariavelmente atrasado. Como detesta os chineses, pensou. Sempre sentiu uma atracção pela Madeira, sobretudo depois de saber que não se permite a entrada a estes indivíduos de olhos em bico que comem cães e gatos e que ganham em todas as modalidades dos Jogos Olímpicos. O seu sonho é levar Paloma, a sua namorada espanhola, a viver nessa ilha. Enretanto, necessita de juntar dinheiro e o corpo de polícias parece-lhe a opção correcta. Pergunta-se agora como soará um disparo no subsolo. Tira os olhos do relógio, e analisa o seu entorno. Nada parece suspeito, à excepção de 2 reformadas que comentam sobre os últimos acontecimentos da capital. Falam em cataclismo e em como o mundo está perdido. John Babyface não suporta reformadas. Sempre lhes tem que ceder o lugar no autocarro, não suporta o seu cheiro a curativo e aspirina. Detesta as suas conversas e a cultura do lamento em que invariavelmente vivem e exploram. Questiona se merecem um balázio. Gera-se a dúvida! As ordens são demasiado claras... matar em caso de dúvida.
José desce apressadamente o último lanço de escadas, quando o metro está a dar entrada na estação. Decide terminar a descida com um glorioso salto das 5 escadas finais, para entrar com muito estilo nos acessos ao metro. Costumava-o fazer na estação da CP da Pampilhosa, com o seu amigo Santiago, quando cumpriam serviço militar no Entroncamento.
John Babyface detém o seu olhar de ave de rapina no postal que desce as escadas apressadamente de mochila às costas. Esquece por uns segundos as reformadas. Nunca pensou poder ver algo assim na sua cidade. Esse indivíduo desce as escadas de cigarro na boca, bigode farfalhudo, camisa bem aberta e com óculos de sol Raybã. Parece um pardal em pleno vôo. Mas que tipo de gente pode entrar no metro desta forma, pergunta-se John Babyface. "Já vi destes bigodes no Rambo, operação Afganistão", diz John. Este indivíduo magricelas está demasiado bem treinado para ser um worker. Vou dar-lhe 5 segundos de benefício de dúvida. Qualquer gesto estranho significará balázio.
"Lacasitos" vive para o estilo. Diz-se ser Metrossexual, e está dentro de todas as tendências. Diz que vive na cidade onde a moda começa e onde a mesma acaba. Diz estar no centro do mundo. Antes de entrar no metro, e como sempre, benze-se e toca o solo com a mão direita, como sempre vê fazer os seus ídolos da SuperLiga Portuguesa: Horácio, Calila, Nuno Gomes. Gosta de deixar uma película de saliva no solo, de forma a fomar uma ponte suspensa entre o rebordo do vagão e o passeio. Por vezes, quando vai mais sobrado de tempo, beija o solo, sentindo-se João Paulo II à saída do Papavião.
John Moore olha persistentemente para este indivíduo repugnantemente idiota. Acha o seu comportamento tão bestial, que decide atirar a matar. Não gosta de ver a sua cidade impregnada de idiotas.
Os tiros soam igual em todas as partes, pensa Babyface enquanto atira o corpo de Casimiro para a linha. É o 4º morto do dia em toda a cidade. Recolhe cuidadosamente os seus pertences, de forma a que possam ser enviados à família. Já não se lembrava o saborosa que era a sandwich de tortilla de batatas. Provou-a em Madrid, no dia em que conheceu Paloma, em plena Plaza del Sol. Não entende porque a vítima não a tinha comido ainda.
O corpo de Casimiro permaneceu na linha durante 4 dias, ao fim dos quais a Embaixada Portuguesa decidiu enviar um estagiário para que recuperasse o cadáver e o empacotasse de forma a poder ser enviado num Hércules C130 para a capital portuguesa. Casimiro não deixa descendência.
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